Canibalismo
emocional
O
que acontece quando nos fechamos num mundo a dois
IVAN
MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA (Foto: ÉPOCA)
Às
vezes eu sinto que vivemos numa bolha.
Não
é o mundo-quitinete da classe média paulistana (ou carioca, ou brasiliense, ou
recifense...), em que as pessoas se esbarram o tempo todo na porta do cinema e
do restaurante. Tampouco é o mundo virtual da internet, no qual passamos horas
mergulhados, entre caras conhecidas, no Facebook, no Twitter, no Instagran...
Não,
a bolha a que eu me refiro é um espaço ainda menor, no qual só cabem dois
corpos que decidem, em comum acordo, dividir juntos o espaço e o tempo. Falo de
relacionamento, namoro, casamento. Falo da vida de casal.
Vocês
já repararam como esse negócio tem uma tendência espetacular a nos confinar? Em
torno de duas pessoas felizes vai se criando uma película invisível que as
separa do mundo e, paradoxalmente, tende a asfixiar a felicidade.
No
início, ficam de fora desse habitat restrito os amigos mais íntimos, justamente
aqueles que costumavam estar mais próximos na vida do solteiro ou da solteira.
Depois, vão sendo afastados, sem que a gente perceba, os amigos e colegas do
segundo círculo de relações, aqueles com quem a gente costumava sair para tomar
cerveja, viajar e ter conversas de valor inestimável sobre o trabalho e a vida.
Por fim, e simultaneamente a isso tudo, a gente se afasta também da família,
que vai sendo sutilmente negligenciada em nome dos planos e da preguiça do
casal.
Ao
final desse processo, um belo dia, a gente percebe que ficou sozinho numa bolha
com a pessoa de quem gosta – e que entre nós e o resto do mundo existe agora
uma grossa camada de indiferença.
Dentro
dessa bolha, claro, ocorrem coisas maravilhosas. A intimidade física e
psicológica do casal floresce, o autoconhecimento de cada uma das partes se
amplia enormemente e cresce, no interior da vida a dois, uma deliciosa sensação
de afeto, amparo e segurança. Dentro da bolha jamais estamos sós. Falamos com o
outro o tempo inteiro ao telefone. Trocamos emails ao longo dia. E, se
acordamos assustados no meio da noite, a outra metade está lá, respirando firme
e tranquila ao nosso lado.
De
muitas maneiras, essa é a situação com que sempre sonhamos. Quando fantasiamos
romanticamente sobre uma relação, ela acontece em cenário fechado – somos nós,
nosso amor, nossos planos e nossas realizações, com uma vida social que permita
partilhar, de vez em quando, a nossa radiante felicidade privada. Assim são os
casais nos filmes, assim acontece nos romances baratos. Assim pode ser a nossa
vida, se quisermos.
A
questão é, deveríamos desejar apenas isso?
Eu
suspeito que não. Uma parte de mim, que já passou por isso, percebe uma
armadilha na bolha da felicidade. Ela cria um ambiente que não se renova. Ela
fomenta o canibalismo emocional – eu me alimento de você e você de mim – e
encurta as nossas dimensões existenciais. Ao mesmo tempo em que crescemos para
dentro da relação, corremos o risco de encolher para o resto do mundo – e
reduzir, drasticamente, o alcance potencial da nossa vida. A felicidade
hermética dos casais é autocomplacente e, lá na frente, pode ser frustrante.
Bem frustrante.
Minha sensação é que casais não são
auto-sustentáveis, no sentido ecológico da palavra.
Os
casais precisam de energia de fora para se renovar. Precisam da presença
constante e questionadora dos amigos. Precisam das raízes e do compromisso da
família. Precisam de uma vida social que inclua desafios e não apenas
entretenimento. Os casais precisam encontrar, fora da bolha, motivos reais para
sonhar e existir. E precisam, desesperadamente, da individualidade vigorosa de
suas partes, que não se desenvolve sem o contato com o mundo.
Quando
eu era garoto, as utopias estavam na moda. Imaginava-se, imaginávamos, que o
mundo mudaria rapidamente, e de uma forma radical. Casais seriam parte
essencial da grande e harmoniosa cumplicidade humana. Não se admitia que as
pessoas pudessem se isolar egoisticamente dentro do seu amor. Era preciso
participar do mundo. Transformá-lo.
Frequentemente,
eu tenho a sensação de que esse impulso generoso nos faz falta. Na ausência
dele, depositamos uma parcela exagerada das nossas expectativas no projeto
privado das relações afetivas. Quando estamos sozinhos, somos tomados pela
urgência de achar alguém e construir um universo de casal. Quando achamos
pessoa certa, nos pomos a trabalhar, laboriosamente, às vezes de olhos
fechados, na tarefa de nos fechar ao mundo junto dela. Temos medo.
Mas,
viver assim, eu suspeito, não é boa ideia. No interior da bolha, mesmo das mais
felizes, acaba faltando ar. Dentro dela, somos tentados a nos curvar sob as
dimensões cada vez menores do mundo que criamos. Assim, quando a bolha explode
- como é da natureza das bolhas explodir -, expõe ao mundo duas pessoas
surpresas e desamparadas, que se sentem infinitamente sozinhas. E de mãos
vazias.
Eu
sugiro, portanto, que os casais não façam bolhas duradouras. Ou, pelo menos,
que abram na parede delas portas e janelas por onde possam circular pessoas e
ideias - passagens por onde a vida exterior possa entrar não apenas como mera
decoração da felicidade, mas como ar, como água, como coisa vital e renovadora
que a vida é.
(Ivan
Martins escreve às quartas-feiras)