Todo
mundo inventa seus personagens, mas alguns acreditam demais no próprio e se
estrepam
Ter
um ou mais personagens para encarar a pedreira do mundo é não só necessário,
como uma questão de sobrevivência. Especialmente se você tiver uma
sensibilidade extremada. Nascemos com uma pelezinha de bebê também na alma (e
aqui não me refiro ao sentido religioso do termo) e precisamos protegê-la. Se
há algo que os outros pressentem é o tamanho da nossa fragilidade. Por isso um
chefe abusivo sempre sabe com quem pode gritar – e com quem é melhor não. Muita
gente é como aqueles cães de caça farejando o flanco mais indefeso para atacar
sua presa. Triste, triste. Mas mais triste é quando, em nome da necessidade de
sobreviver, criamos um personagem que se mostra tão útil que acaba se
confundindo com nossa derme mais profunda. Se criar personagens é preciso,
despir-se deles constantemente é vital.
Como
ando bastante por aí, tanto por razões profissionais quanto por gosto, observo
muito as pessoas. E seus personagens. E, muitas vezes, tenho vontade de dizer,
e em algumas delas, se há um grau de intimidade que me permita falar sem
ofender, eu digo: “Pronto, você já fez o seu show. Agora, por favor, para
jantar comigo enfia a máscara dentro da bolsa e relaxa”.
Ninguém
se iluda de que é absolutamente verdadeiro o tempo todo, até porque somos
muitas verdades ao mesmo tempo e seguidamente elas são contraditórias. Aquelas
pessoas que parecem muito “autênticas” porque são extrovertidas, dizem coisas
chocantes, se arriscam no estilo, estão muito bem cobertas por suas máscaras e
morrem de medo de serem reveladas. A máscara do “autêntico”, “louco” ou
“excêntrico” é uma das mais corriqueiras. Este tipo faz piada com o ponto fraco
dos outros, dando gargalhadas e batendo nas costas da vítima e, quando alguém
reclama, uma meia dúzia de amigos sai em sua defesa dizendo que “é o jeito
dele”. Ahan.
Há
o tipo “bonzinho” que, mesmo fazendo coisas horríveis e muito bem dissimuladas
de vez em quando, é tão convincente no “foi sem querer” ou “ele jamais faria
isso de propósito” que é imediatamente perdoado. Existe a “mulherzinha”, tão
frágil que parece que vai quebrar a qualquer adjetivo mais eloquente. Esta
manipula brilhantemente nossos mais primitivos instintos de proteção e, se você
tem a coragem de dizer para ela tomar jeito e prescindir do diminutivo,
imediatamente é você quem vira uma megera. E há o seu oposto, “a mulher alfa”,
esculpida a navalhadas, que se arma de sapatos de bico fino, terninhos de grife
e cortes de cabelo modernos, mas práticos, para arrasar meio mundo a bordo de
sua armadura como se o melhor produto do feminismo fosse uma mulher se tornar
um clichê de homem.
Enfim,
são muitas as fantasias que vestimos para não sermos engolidos pelo mundo. Em
geral não somos nem mesmo uma máscara definida, como as que acabei de expor
apenas como recurso didático. Não somos Batman, Coringa, Gilda, Bambi ou Madre
Tereza de Calcutá. Somos uma mistura de vários estereótipos. E, se é verdade
que vestimos máscaras, também é verdade que não há um “eu” essencial – mas sim
um “eu” fluido e incapturável, em constante movimento de mutação. E é nesta
fluidez do eu, que não pode ser confundida com ausência de rosto, que residem
nossas verdades mais profundas.
Acho
que nossas máscaras começam a colar no nosso rosto ainda na infância. Uma
mistura entre a necessidade de rotular que os pais em geral têm e o nosso
desejo de satisfazê-los – ou de escapar da prisão que intuímos. Numa família
com mais de um filho é mais fácil perceber. Um é o extrovertido, o outro é o
tímido, outro ainda é o rebelde. Ou um é o estudioso que “não dá trabalho
nenhum”, o outro é o vagabundo que ninguém sabe “por quem puxou”. E há o outro
que tem – socorro! – “transtorno do déficit de atenção e hiperatividade”.
Os
pais costumam botar um rótulo em cada filho, e a escola raramente tem competência
para, em vez de reforçá-los, quebrá-los para que as crianças tenham outras
possibilidades de expressar aquilo que são ou se tornar algo diferente do que
foram levadas a ser. Uma pena, porque quebrar máscaras impingidas ainda na
infância talvez seja a grande função de um educador. É muito difícil
identificar se alguém “é assim” ou se tornou o que sempre ouviu que era. Agora,
que as crianças são medicalizadas cada vez mais cedo e os rótulos ganharam
status de “diagnóstico”, com a entrada do “especialista”, danou-se.
De
fato, ninguém é – todos nós nos tornamos. E este “tornar-se” não é um caminho
linear rumo a um rosto definitivo, que daria conta de nossa essência. Não há
essência, o que existe é construção a partir de um conjunto de genes, de
influências ambientais e experiências as mais variadas, de inscrição no momento
histórico e de livre arbítrio – ainda que o livre arbítrio nunca seja tão livre
assim. Embora possa ser assustador pensar que não há um “eu” essencial a ser
alcançado, de fato é bastante libertador.
Somos
uma constante invenção e reinvenção. E, tão importante quanto, desinvenção.
Vale a pena não esquecer que sempre podemos nos desinventar. Ainda que
carreguemos conosco tudo aquilo que vivemos, a mágica está em dar novos
significados a antigas experiências e ter a sabedoria de nos livrarmos do que
não é nosso, apenas foi impingido a nós como uma roupa de gosto duvidoso. Por
isso, é bom tomarmos muito cuidado para não rotular os outros, como se nossas
sentenças fossem imunes de preconceitos. E mais cuidado ainda se estes outros
forem os nossos filhos, para que nossos rótulos não virem destino.
Acho
que a melhor forma de não impingir máscaras aos outros é não impingi-las a nós
mesmos. É bem fácil cair na tentação de transformar uma de nossas máscaras,
aquela que nos parece mais eficaz no embate cotidiano, em nosso rosto
definitivo. A máscara se torna tão usada que vai se fundindo primeiro à nossa
pele, depois aos nossos ossos. Não é que vire ferro, como no clássico de
Alexandre Dumas. O problema é que vira carne humana, mesmo. E aí, meu amigo,
fica bem difícil de arrancá-la, porque passamos a acreditar que morreremos no
processo. Ou que, por trás dela, não há um ou muitos rostos, mas um vazio
infinito. Muita gente se agarra a seu personagem com medo de que, se a máscara
for arrancada, descubram que não há nada lá. A máscara serviria, neste caso,
para esconder a ausência de face.
Tento
me livrar da tentação de virar personagem, uma máscara só, pela própria
escrita. Parte do ímpeto que me move a inventar outras vozes narrativas para
mim e outras bases para estabelecer o cotidiano se dá pelo meu temor de acabar
gostando demais de alguma máscara conveniente. Tento me quebrar o tempo todo me
jogando em desafios novos sem pensar muito nos riscos para me desgarrar da
tentação das certezas sobre mim. Tem funcionado.
Além
das mudanças mais profundas, que quem me acompanha nesta coluna está cansado de
saber, há pequenas trocas de atitude que podem ser bem divertidas. Eu sempre
fui disciplinadíssima, por exemplo. Estou numa luta feroz comigo mesma para
deixar de ser. No último final de semana consegui um feito inédito em 45 anos
de vida: dormi 16 horas seguidas. Almocei e ainda me entreguei a mais duas
horas de sesta. Vou acabar esta coluna e tomar uma cerveja em comemoração a
isso.
Sempre
fui pontualíssima e, como todas as pessoas pontuais deste país, esperava muito.
A ponto de o garçom ficar com pena e vir conversar comigo. Agora, com exceção
dos compromissos de trabalho, resolvi deixar todo mundo me esperando. É uma
delícia a cara de surpresa dos amigos. Chego e está todo mundo lá. Costumava
comer chocolates aos poucos. E, quando ia comer, antecipando o gosto do bombom
desmanchando na minha boca, alguém lá de casa já tinha dado cabo dele. E ainda
me acusava: “Você faz isso de propósito, para me tentar. Por sua causa, acabo
engordando”. Pronto, além de ficar sem chocolate, ainda era culpada pelo
descontrole alheio. Mudei. Agora devoro compulsivamente meus chocolates e
também o dos outros.
Não,
não parecem mudanças muito salutares, eu sei. Mas elas cumprem, pelo menos por
algum tempo, a função de me desconstruir tanto aos meus olhos como aos olhos
dos outros, que cultivam a pretensão de que a gente seja a mesma até o final
dos tempos. Um peso que, com licença, não pretendo arrastar por aí como se
fosse meu.
Especialmente
nas questões mais profundas, desmascarar a si mesmo é uma prática importante do
cotidiano. E também um ato que precisa ser constantemente recriado. Nosso
instinto de sobrevivência engendra armadilhas e argumentos bem convincentes
para absorver este “duvidar de si mesmo”, que nos mantêm alertas com relação a
nossos próprios ardis, e acaba por torná-lo mais um penduricalho que tem apenas
um efeito placebo. O que o mercado faz com a contestação ao mercado,
transformando-a em um produto, nós fazemos com relação à nossa porção
contestadora, ao transformá-la em nossa versão de mercado. De tal forma que, um
dia, sem perceber, paramos de tirar a maquiagem no fim da noite e dormimos
acreditando que a máscara é a nossa cara.
Dias
atrás encontrei um conhecido muito talentoso. É brilhante mais vezes do que a
maioria. Arrasta com ele uma legião de fãs. E, principalmente, tem o que dizer
porque é um grande criador. Fazia algum tempo que não o encontrava pessoalmente
e fiquei estarrecida ao perceber que ele tinha virado um personagem, um bufão.
Não mais um bufão como forma de contestar a hipocrisia, mas um bufão como forma
de não ser contestado em sua hipocrisia.
Torço
para que ele perceba a tempo que a máscara é uma versão bem pobre dele mesmo,
já que não tenho intimidade para dizer a ele eu mesma. Enquanto isso, ao
testemunhar a figura triste em que ele se transformou, tratei de aprimorar meus
próprios alarmes antimáscaras. E escrevi esta coluna na esperança de que ela
possa ajudar a acionar a sirene em cada leitor. As máscaras têm sua função,
desde que não nos apeguemos a elas a ponto de fazer da mais confortável um
rosto que agrada a todos – menos a nós mesmos.