Não importa que corpo você tenha, insistem em fazer com que você se sinta infeliz com ele
Como reagir a um mundo que insiste em fazer com que você se sinta infeliz com seu corpo, não importa que corpo você tenha!
As mulheres
de proporções “perfeitas” estão em todas as revistas, anúncios,
catálogos, comerciais de TV: 90 de busto, 60 de cintura, 90 de quadril,
todas vestindo o desejadíssimo manequim 38. Elas não são nem tão magras
quanto as modelos de passarela nem tão voluptuosas como as mulheres
fruta. Elas são equilibradas. Elas são inatingíveis. Elas vendem saúde, o
sorriso é branquíssimo, o bronzeado vive em dia, uma pele sem manchas,
uma bunda durinha e curvas perfeitas. Elas são um sonho. Elas são o que
você não é. Elas são, aliás, algo ainda pior: elas são o que você
poderia ser. A mulher ideal.
Bastava
só um remedinho a mais, uma dieta um pouco mais forte, horas e dias
extras na academia, um tratamento estético especial. Porque o que elas
fazem é deixar as garotas “reais”, nós, com água na boca, famintas por
todos aqueles atributos estampados ou projetados na tela. Ah, como elas
fazem a gente viver de mal com a gente, não é? Você não se sente assim?
Um pouco? Muito?
Por que isso é tão comum?
De acordo com um levantamento da antropóloga norte-americana Jean Kilbourne, que analisa a imagem do corpo feminino na publicidade há mais de duas décadas, somos bombardeadas a cada semana por cerca de 3 mil anúncios publicitários que trazem modelos (mulheres ou homens) extremamente manipulados por programas de edição de imagem. Gente sem uma ruga, cicatriz ou imperfeição – além de serem quase sempre pessoas brancas e extremamente magras, cujo biotipo “small” (pequeno) diz respeito geneticamente a apenas 5% da população. Depois disso, como é que os outros 95% vão se sentir normais?
Eles não se sentem. Quando tinha 20 e poucos anos, a cantora paraense Gaby Amarantos,
33, vivia às turras com o espelho. “Só me vestia de preto”, diz.
“Achava que menina gordinha devia usar preto porque fazia parecer mais
magra.” Na época, teve depressão e desenvolveu bulimia. “Eu achava que
não tinha nenhuma chance, que, para ser cantora, ter namorado e uma vida
legal, uma mulher tinha que ser magra.”
Insatisfação crônica
Com toda essa pressão social, a preocupação com o corpo não é, nem de longe, privilégio de meninas gordinhas. A designer Julia Rocha, 28 anos, uma das garotas que ilustram estas páginas, é um exemplo disso. “Uso manequim 40, 42, mas definitivamente não me sinto bem resolvida com o meu corpo.” O que a incomoda: “Tenho quadril demais, culote. Às vezes me sinto flácida. Nunca usei um vestido tubinho na vida”.
Apesar
de muitas vezes ficar brigando com o espelho, Julia sabe que sua
paranoia tem raízes culturais e psicológicas. “A gente lida com muita
pressão, ainda mais aqui no Rio de Janeiro. Você está sempre na praia,
cercada de pessoas lindas. Tem dias em que me sinto um lixo. Mas sei que
tem a ver com a minha cabeça. Quando estou bem, não me sinto mal com
meu corpo.” Na busca por esse acordo com a autoestima, a designer
decidiu reencontrar a própria beleza e topou ser retratada nua pelo
fotógrafoJorge Bispo no projeto Apartamento 302 [leia box abaixo].
Em vez de encarar a câmera fotográfica, a socióloga Kjerstin Gruys escolheu
outra estratégia: não olhar. Nem para o espelho. Faltavam seis meses
para o dia do seu casamento e ela vivia um roteiro clássico de
preocupações: queria emagrecer e não conseguia. A pele tinha marcas e
não deveria ter marcas. O cabelo podia ser outro, o mundo era injusto, o
universo era uma praga. Era março de 2011 e Kjerstin tinha acabado de
tirar um dia para provar o vestido de noiva. Na loja, viu um desastre em
tecido branco e forma de mulher. Nada cabia, nada ficava bom, por que
tudo estava sempre tão errado?
Na
manhã seguinte, a norte-americana, uma ex-vendedora de butique,
acordou, olhou para o espelho e tomou uma decisão: não olhar mais para o
espelho. Por um ano. Ela iniciou, então, um mês de treinamento.
Aprendeu a escovar os dentes sem deixar marca de pasta na bochecha, a
pentear os cabelos, a botar a lente de contato, a passar maquiagem, a
ajustar a roupa. E criou um blog para registrar o desafio, o Mirror
Mirror, Off the Wall.
A
experiência transformou a vida de Kjerstin. A blogueira casou, manteve o
site, ganhou atenção da imprensa mundial, prepara um livro relatando
suas memórias do projeto e, acima de tudo, encontrou um sentido na vida:
alertar contra a paranoia da beleza perfeita. Tornou-se, por fim, uma
investigadora desse inimigo com que você, eu e metade do mundo
convivemos centenas de vezes, todos os dias: o nosso reflexo.
“No
dia em que eu olhei um espelho pela primeira vez depois de um ano longe
deles”, escreve Kjerstin em seu site, “a coisa que mais me surpreendeu
agradavelmente foi descobrir que as minhas primeiras observações não
foram sobre o tamanho do meu corpo. Foram sobre a cor da minha pele!”
Ela tinha percebido, após atravessar sua missão pessoal, que não havia
ficado mais magra, mais loira, mais alta, mais bonita ou mais feia. Sem
espelho, sem vaidade desequilibrada e sem pressão social, Kjerstin ficou
mais... leve.
A cantora Preta Gil,
37 anos, é um símbolo de quem já passou por esse processo de intenso
sofrimento e inadequação para chegar à reafirmação de um físico natural.
“Sofri todo tipo de bullying por ser negra e gordinha”, diz. “Mas há
sete anos estou em paz com meu corpo.” A moça, que hoje veste um mais
que assumido manequim 46, lançou mês passado uma coleção de roupas plus
size para a marca C&A. “Percebi que era amada pelos meus fãs, pelo
meu marido, pelo meu filho. Por que só eu não ia me amar?”
Nesse meio-tempo, em 2010, Preta ganhou um processo contra o programa Pânico na TV!,
que exibiu imagens em que ela tomava um caldo na praia de Ipanema. A
piada mostrava uma sósia “encalhada” na areia, sendo retirada por um
trator. Os humoristas foram condenados a pagar R$ 100 mil por danos
morais. Dois anos antes, Preta já havia acionado o Google na Justiça. O
motivo: o buscador associava seu nome a “atriz gorda”. Assim, virou uma
espécie de ícone de mulher que briga para ser o que é. “Sei que tenho um
papel político nessa luta e isso me deixa feliz”, afirma.
“Existe uma espécie de complô que faz com que as mulheres não se sintam felizes com os seus corpos” Marle Alvarenga, nutricionista
O
que não quer dizer que ela não tenha sofrido, e muito, em busca do tal
manequim perfeito. “Vestia 38. Depois que engravidei, aos 20 anos,
passei por uma operação de vesícula, engordei 30 quilos e fiquei anos
lutando contra isso. Fiz duas lipos e me arrependo. Tomei remédios, um
absurdo”, conta. Preta se prepara para lançar um disco este mês, em que
reforça sua bandeira da aceitação. Vai se chamar Sou como sou.
Não
é difícil entender como Preta Gil entrou nessa. “Existe uma espécie de
complô que faz com que as mulheres não se sintam felizes com os seus
corpos”, afirma a nutricionista Marle Alvarenga,
diretora do Grupo Especializado em Nutrição e Transtornos Alimentares
(Genta). “O número de revistas e livros de dietas cresceu
exponencialmente desde os anos 80. Existe um mercado que vive dessa
insatisfação feminina. Até médicos. Muitos lucram com promessas de
milagre.”
Um
dos “remédios da moda” para surrupiar uns quilos da balança é uma
injeção indicada para quem tem diabetes. “É melhor nem colocar o nome da
substância na revista”, diz Marle. “A paranoia é tão grande que, mesmo
não aprovado pela Anvisa, a agência que regula os medicamentos no país, e
mesmo sem saber exatamente quais são seus efeitos colaterais, algumas
pessoas arriscam. É absurdo.”
Aviso
sério. Quem quer realmente entrar em uma calça 38 não vai conseguir
fazendo uma dieta atrás da outra. “Todo mundo precisa comer de forma
saudável. Fazer regimes de abstinência e depois compensar comendo tudo o
que não comeu no dia seguinte causa problemas graves”, explica a
nutricionista. “Entre outras coisas, isso faz com que seu corpo não
emagreça. E é preciso entender que ser magra não tem nenhuma ligação com
ser saudável.” A afirmação pode parecer óbvia, ou escandalosa. Afinal,
estamos acostumadas a associar magreza com saúde desde que nascemos. “O
que mede a saúde de alguém não é o peso”, prossegue Marle. “Mas a taxa
de açúcar no sangue, a hereditariedade, uma série de fatores que não
podem ser medidos pelo peso. Muitas vezes emagrecer pode ser tudo, menos
saudável.”
Atenção
para as palavras da nutricionista: “Não existe nenhum remédio que vá te
fazer entrar em uma calça 38 se esse não for o seu biotipo”. Ela disse
nenhum, percebeu?
“Vivemos a era da esteticomania”, afirma a filósofa Marcia Tiburi.
Uma época em que o que importa é o corpo que você vai exibir, seja em
uma coluna social ou no Facebook. “E não é só o corpo. É tudo o que pode
ser transformado em imagem. Você precisa exibir um corpo perfeito, um
carrão, tudo que forme um conjunto de imagens considerado poderoso”,
explica.
Esteticomania e gordofobia
Marcia acredita que o corpo é visto como uma religião. E, como em toda religião, o sacrifício é valorizado. “Por isso, uma mulher que não faça dieta é vista como ‘desleixada’. Se ela não se sacrifica, é como se fosse infiel. A gordura é vista como excesso. O sacrifício, seja na academia ou para fazer dietas bizarras, é muito valorizado. Se você não faz esse sacrifício, é visto como um ser menor.”
A
cantora Gaby Amarantos lembra que, além de ter tido bulimia, tomou
remédios e até se submeteu a uma cirurgia de lipoaspiração para tentar
se livrar da culpa de ter o corpo “fora de forma”. “Fazer essa plástica é
uma das coisas das quais mais me arrependo”, conta. “Fiquei cheia de
cicatrizes, doeu. Foi muito violento.” Hoje, aos 33 anos, depois de ter
um filho, conta que finalmente se libertou. “Vi que perdi muito tempo da
minha vida sendo infeliz e me aceitei completamente. Uso a roupa que
quero, mesmo que tenha que mandar fazer. Rebolo no palco, me sinto
sensual. As pessoas acham que se você não é magra você tem que ser
infeliz. Eu não sou infeliz.”
“É
como se o corpo da mulher fosse visto com os óculos de alguém que vai
medir um caixão. Parece pesado falar isso, mas as pessoas julgam o corpo
por uma medição” Marcia Tiburi, filósofa
O
problema é que ser chamada de gorda continua sendo um insulto. E
daqueles. “Não sei te dizer quantas vezes por dia sou xingada na
internet”, conta Lola Aronovich, autora do blog Escreva Lola Escreva.
“E, quando querem me ofender, o que eles escrevem? Escrevem que sou
horrorosa e gorda.” O preconceito físico é um dos assuntos preferidos de
Lola, uma professora universitária especialista em literatura inglesa
que também já foi sugada pela paranoia dos regimes. “Tomei inibidores de
apetite dos 22 aos 29 anos, entrava e saía de regime e não conseguia
emagrecer.” Hoje, ela não sabe quanto veste e dedica parte do seu tempo a
estudar o tema. “Se eu, que tenho 45 anos, me sinto oprimida, imagina
uma adolescente? Recebo cartas de meninas que se sentem cobradas e
excluídas por não terem o corpo que imaginam ser o ideal.”
Para
Marcia Tiburi, esse olhar cheio de crueldade – e com uma fita métrica
embutida – sobre o corpo feminino é uma espécie de negação da vida. “É
como se o corpo da mulher fosse visto com os óculos de alguém que vai
medir um caixão. Parece pesado falar isso, mas as pessoas julgam o corpo
por uma medição”, explica. “Como um vendedor de caixão que quer saber
‘se esse corpo cabe’ naquela caixa. É um corpo cadáver, então, já que só
se valoriza o peso, o tamanho. Dentro dessa esteticomania, a mulher
valorizada é aquela que consegue controlar o seu corpo. Um caixão é uma
calça 38.”
No início da adolescência, lá pelos seus 13 anos, a atriz Gabriela Haviaras vestia
manequim 34. Rapidamente, com o crescimento precoce, passou a usar 40.
“Morria de vergonha de ir à praia”, conta a carioca. Aos 20 anos, seu
comportamento começou a mudar. A aceitação do tipo físico chegou com o
esporte. “Comecei a fazer ioga. Vi que o meu corpo era bonito, que tinha
elasticidade. Quando você está saudável, você fica naturalmente bonita,
independentemente do seu peso”, diz. “Acho um absurdo essa imposição
para que a gente tenha que vestir 36 e 38. Isso não faz parte da nossa
cultura. Sou uma brasileira típica. Tenho quadril largo.”
A artista plástica Nathalie,
francesa que mora no Brasil há dois anos e que também ilustra esta
reportagem, tem 30 anos. E já percebeu que tentar entrar em uma calça 38
é bobagem. “Nem sei quanto visto. Acho que é 42... Mas fico chocada ao
ver a obsessão pelo corpo que existe no Brasil. Talvez nos Estados
Unidos, onde já morei, seja igual. Mas é seguramente pior do que na
Europa.” Faz sentido, já que Brasil e Estados Unidos são os campeões
mundiais de cirurgia plástica. “As pessoas procuram perfeição. Mas, se
você procura perfeição, nunca vai estar feliz”, diz. “A perfeição não
existe.” Nem se você vestir 38.Publicado por: http://revistatpm.uol.com.br/revista/123/reportagens/eu-nao-visto-38-e-dai.html
* Colaborou Gabriela Sá Pessoa
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