Feliz Dia Internacional da Mulher.
Pra você, Dona Maria, que viveu os últimos 40 anos da sua vida casada com um homem de caráter, o pai perfeito, o consorte que sempre fez todas as suas vontades, mas que sempre menosprezou a sua opinião no que ele chamava “questões da casa”. Você sempre quis dizer que isso era ridículo, que a casa era tão sua quanto dele, talvez até tenha pensado em dizer que, (pasmem!) enquanto ele bebia qualquer coisa no bar com os amigos (ou com alguma “periguete”), você estava colocando os filhos de vocês pra dormir, coisa que ele não fazia desde a sua primeira licença maternidade. Mas você nunca falou. Porque você sempre achou que isso era “coisa da vida”, ficar em casa quase à contragosto enquanto o maridinho querido passava a noite fora e voltava na alta madrugada, quase sempre bêbado. E você envelheceu conformada com isso, assim como sua mãe antes de você.
Pra você, Laís, que outro dia descobriu, na gola da camisa do seu marido, a marca de batom vermelho-vivo, e não conseguiu impedir o choro torrencial. Não há nada de errado em chorar, claro, nada de errado com sofrer uma traição. Você se olha no espelho, vê que não é mais como era no dia do casamento. Já apareceram as celulites, uma estria aqui e outra ali, o “excesso de gostosura” começa a se acumular acima dos quadris… tudo parece tornar óbvia aquela tragédia. E pensando nisso ligou pra sua mãe, dona Maria, para se aconselhar. Ela te esperou terminar de soluçar pra soltar a pérola: “Perdoa ele. Homem é tudo igual. Tenho certeza de que foi coisa de momento, de que ele ainda te ama. Conversa com ele quando ele chegar. Deixa ele se retratar”. E você, mesmo sabendo que ele vai mentir, sabendo que vai doer bastante olhar nos olhos dele e ver a verdade, decidi ouvir dona Maria. Seus filhos não merecem passar por isso.
Pra você, Cláudia, que ontem mesmo teve que voltar pra casa da sua mãe com o rosto inchadíssimo e o orgulho no chão, porque seu marido decidiu que você era uma “puta, safada e mentirosa”. Você é bem-sucedida, sua empresa era pouco mais que uma pocilga quando você se elegeu presidenta. E com algumas decisões boas, algumas jogadas de mercado arriscadas, você conseguiu torná-la expoente na área, apesar dos boatos de que você tinha “chupado alguém” pra chegar lá e fazer tudo isso. Um dia você decidiu que ia pro Happy Hour do bar da esquina com alguns dos funcionários, a maioria homens, pro seu azar. O clima é bem alegre, todos estão levemente ébrios, quando o seu marido, para quem você pediu uma carona, chega para lhe buscar. Ele está bem sério, você percebe pelo vidro da janela. Você dá beijinhos em todo mundo e se despede com um sorriso bem aberto e simpático, antes de bater a porta e fechar o cinto. E você pergunta para ele o por quê daquele estresse que o fazia bufar, no que ele responde um “em casa a gente conversa” atravessado. Antes mesmo de ele terminar de fechar a porta da casa você recebe um tapão no rosto. Ele começa a lhe espancar e lhe xingar de “puta, safada, mentirosa, piranha”, e todos os outros impropérios de que você lembra. E então ele finalmente sai de cima de você, que é obrigada, pelo que lhe resta de amor próprio, a pegar a maior mala que consegue, jogar tudo que tinha lá e pegar o carro até seu “porto seguro”.
Pra você, Fernanda, que é linda, sabe disso, e gosta de sair nos fins de semana com suas amigas. Não gosta de usar calças pras festas, preferindo saias, de preferência justas. Sempre chama atenção quando chega em algum lugar, seja pelo seu jeito extrovertido, daquelas pessoas que gritam quando encontram um conhecido do outro lado do quarteirão, ou pela beleza estonteante, somada a um corpo escultural (que você cultivou para si mesma, claro). Você já é conhecida, em algumas festas, por ficar com quem quer quando quer, e isso lhe deixa meio “mal falada”, mas pra que se incomodar com isso? Se as pessoas não conseguiam ficar com ninguém, que falassem pelos cotovelos o quanto quisessem. Entretanto, um dia, você foi pra uma festa e ficou mais bêbada que o normal, e tinha um cara em cima de você há algum tempo. Você decide ficar com ele pra ver se ele te deixa em paz, e descobre que não vai ser bem assim. Ele começa a lhe agarrar com força, querendo trocar mais carícias, e você está tonta demais para evitar, e apenas diz palavras soltas, “não”, “para”, “não faz”… e então você acorda de novo, em uma casa que lhe é estranha, em cima de uma cama, e ele em cima de você. As mesmas palavras são repetidas, agora com mais convicção, mas ele continua a ignorar e segue em frente. E quando ele finalmente acaba e apaga do seu lado, o que lhe resta é segurar as lágrimas e pedir um táxi. E antes mesmo do almoço do dia seguinte, você encontra fotos suas circulando pelas redes sociais. Fotos que ele havia tirado. Quando sua irmã vai te chamar pro almoço ela te encontra na cama, com uma cartela de remédios vazia do lado.
Pra você, Mariana, que não é a menina mais bonita da sua turma da escola, com um sobrepeso incômodo e um problema de acne que se agravou quando completou dezesseis anos. Claro, isso não impede os garotos das turmas mais velhas de assoviarem e falarem algumas coisas ruins pra você enquanto você tenta ignorar eles, quase sempre em vão. Mas você não liga pra eles, eles são idiotas. A única pra quem você liga é a sua colega Camila, linda como uma atriz mirim, que é sua amiga desde o ensino fundamental. Ela é como você, não liga pros meninos idiotas e infantis. Um dia vocês vão juntas ao cinema, ver o filme do ator que todas as suas amigas acham “lindo”, mas que você não acha nada demais. Sempre foi difícil pra você entender o que elas viam naqueles homens, que para você não eram nada demais. E então você vai pegar a pipoca e toca na mão da sua amiga. E não tira a mão de lá. Ela também não afasta a mão. E, então, você finalmente entende o motivo do mocinho do filme olhar daquele jeito tão bonito pra mocinha. E vocês ficam ali até o filme acabar. E saindo de lá as mãos das duas ainda estão juntas. E quando os pais da Camila vai buscar vocês duas, as mãos ainda estão lá. O pai dela parece não ligar, até faz aquelas piadas de sempre, mas a mãe dela parece profundamente incomodada. No dia seguinte, na escola, ambas estão nas nuvens, quando a coordenadora manda chamar você. Chegando na sala dela, você encontra o seu pai, com o rosto completamente vermelho. Ele manda você buscar as coisas, que estavam indo pra casa. A viagem inteira no carro foi ele gritando com você, falando que não tinha criado filha “sapatão” (o que quer que seja isso) e que isso era uma pouca-vergonha. Chegando em casa ele lhe dá uma surra, coisa que você nunca tinha levado, e te deixa chorando no quarto. Na semana seguinte você está na escola com ele, preenchendo os documentos da sua transferência. Ao que parece ele também não lhe queria na companhia da Camila mais. Por que ele estava fazendo aquela maldade com você?
Pra você, Carlos, ou melhor, Angélica, que aos dezoito anos descobriu se identificar no sexo feminino. Seus amigos sempre souberam que você era gay abertamente, e eles nunca se importaram, seus pais também não, apesar de eles temerem por você. “Sem razão”, você achava, “faz tempo que gay já não é perseguido que nem antes”. E no entanto, você sabia que alguma coisa ainda estava errada. Foi quando você entrou em contato com a transexualidade, e algo estalou dentro de você, brilhou. A princípio você tentou evitar a ideia, era radical demais, muito agressivo, os hormônios podiam alterar alguma coisa que não devia ser alterada… mas você não conseguiu controlar mais. A princípio você mudou o que você conseguia mudar sem alteração hormonal, a começar pelo guarda-roupa, as unhas, o cabelo, a presença cotidiana da maquiagem. E então seus pais, vendo o óbvio acontecendo debaixo do nariz deles, decidiram que pagariam a sua alteração hormonal na semana seguinte. Você quase não cabia em si de alegria. Começou a gritar, gargalhar, e se emocionar diante deles, que sorriam diante de você. Aquele era o melhor dia da sua vida. A semana parecia se arrastar, mas você não desanimava, e cantava os minutos em voz alta. Porém, no final de semana anterior ao início do tratamento, você encontrou um pessoal mal encarado. Todos olharam pra você, e até você perceber a situação em que estava, você já era jogado no chão e eles começaram a linchá-lo.”Bichona, mona, traveco” e sinônimos eram palavras repetidas a cada novo soco, chute ou garrafada. Ao amanhecer, o seu nome apareceu nas manchetes policiais, com uma foto do corpo e, ao lado, uma foto de seus pais, inconsoláveis, abraçados um ao outro. Perderam sua única filha.
E um feliz Dia da Mulher pra você também, Jujuzinha, que queria comprar um carrinho de brinquedo mas ganhou uma boneca, porque “carrinho é brinquedo de menino”.
Feliz Dia Internacional da Mulher pra todas as Marias, Laís, Cláudias, Fernandas, Marianas, Angélicas, Julianas, Jéssicas, Brunas, Isabelas, Vivianes, Alessandras, Larissas, Nicoles, Victórias e milhares de outras, por conviverem com o fardo de ser mulher, por ouvirem ofensas que ninguém diria à própria mãe, por terem medo de sair na rua de noite, por lidarem com injustiças sociais e econômicas com frequência muitas vezes diária, por carregarem todas as histórias das suas mães e das mães delas, e ainda assim serem capazes de sorrir e seguir em frente.
O Dia Internacional da Mulher não é um dia de homenagem, é um dia de perdão que a sociedade força sobre si mesma. E mesmo assim nós o recebemos como a um feriado.